Prédio-Vivo

27/02/2021

O mais incrível é que o "Prédio da Caixa" estava ali havia quase 60 anos. E há décadas que este edifício modernista, no meio da Av. Amaral Peixoto, sofria transformações, apropriações, estigmatizações e processos outros que vivificam e personificam uma mera estrutura urbana. A história que contaremos hoje é a história da Lorena, mas também de diversos outros moradores deste prédio-vivo. É uma história de intimidade com o lugar, mas também uma história trágica, recorrente. O prédio, depois de diversas alterações em suas funções, foi se esvaziando. E ao passo em que se esvaía em funcionalidades, os apartamentos passaram a ser ocupados. Estamos falando, não simplesmente de um prédio, nem de uma história, mas de vidas. Vidas inteiras, histórias diversas e construções coletivas no prédio. Havia pessoas que o ocupavam há 8, 10, 20, 30 anos. Tem quem nasceu no "Prédio da Caixa", tem quem teve filho naquele prédio, vidas inteiras. O barato da cidade é que ela é feita por gente que age, reage. E assim são os prédios. Uma estrutura de concreto, ferro, uma engenharia que permite com que vidas simultâneas se co-construam. Lorena, que nos contou essa história, vivia há 4 anos no prédio com a sua mãe. E pontuou:


- Na realidade, o "Prédio da Caixa" acabou se tornando a moradia dos excluídos. Muitas pessoas que moravam no prédio eram populações em uma situação de rua, imigrantes nordestinos que vinham para cá e não tinham onde ficar, Trans/Travestis/Gays expulsos de casa que não tinham onde ficar.

E assim foi-se tecendo uma comunidade posta à margem pela sociedade, que naquele lugar vivia junta. O prédio já estava há um tempo sem água por conta de suas dívidas, sem energia, sem elevador, sem segurança. Por conta da auto-organização, ou seja, "das pessoas segurando a barra do prédio porque os síndicos não prestavam serviço", eles conseguiam se manter no prédio-vivo. "Era uma comunidade ali", afirmou. E aí veio a surpresa. Em abril de 2019, a síndica colou uma notificação na parede, algo como: vocês todos têm 2 dias para mudar radicalmente suas vidas, sair desses apartamentos, dar um jeito em seus pertences e dar os seus pulinhos para viver. Ironias à parte, o aviso foi feito: o prédio estava interditado e deveria ser desocupado em 48 horas.

- Eram 48 horas para desocupar o prédio, e não tinha aluguel social, não tinha elevador, não tinha energia, e assim... é a nossa casa, né. Bizarro.

Foram algumas tramitações jurídicas até que os moradores conseguiram uns dias a mais. Dez dias. E assim iniciou-se a luta, como bem disse Lorena. Foram dez dias em que a estudante correu a cidade de Niterói, contatou quem pôde e quem não pôde, lutou contra o relógio, para impedir a remoção do "Prédio da Caixa". Infelizmente, a máquina-cidade é acelerada, voraz. Principalmente Niterói, uma cidade-máquina em pleno processo de revitalização de seu centro. Em dez dias, as 6 da manhã, todo o aparato policial e jurídico do município já estava lá: o BOPE, a PM, a Guarda Municipal, a Polícia Civil, 21 oficiais de justiça, o Conselho Tutelar. As calçadas já estavam lavadas, a população de rua já havia sido retirada e o quarteirão isolado.

- A gente ficou abismado com o quão competente, digamos assim, o quão efetivos eles foram para fazer isso. Foi muito violento, né? Moradoras foram xingadas (...), a gente não conseguia tirar as nossas coisas. Foi muito violento, assim, toda remoção é muito violenta, muito traumática. (...). Por volta das 14h e pouco, concretaram o muro e a gente não conseguiu. Poucas famílias conseguiram tirar as coisas, as que conseguiram foi só parcialmente. Eu por exemplo, fiquei só com a roupa do corpo. A única coisa que eu consegui retirar foram meus gatos, uns documentos, minha guitarra.

E os relatos se multiplicavam. O estudante de odontologia sem seus aparelhos de fazer dentaduras; a costureira que deixou todas as máquinas, os diversos idosos que tiveram que sair às pressas de seus lares, seus lugares, descendo escadas, em um prédio sem luz, com seus pertences em seus braços. "A situação é muito precária, sabe. Foi calada, nós somos calados o tempo todo". Naquele momento, ficaram 73 moradores em situação de rua.


Infelizmente, uns ainda estão. E com ainda mais pesar, quando alguns foram removidos de seu prédio-vida, perderam também a sua vida.

Era uma moradora muito querida, era uma lutadora, que cozinhava para seus companheiros na ocupação e para pessoas em situação de rua. Ao ter o aluguel social indeferido, Sueli passou a viver em situação de rua. No início deste ano, foi encontrada morta na Av. Amaral Peixoto, próximo ao prédio-vivo, na calçada. Uma senhora, morta por pneumonia, na rua, após perder seu lar.

-Tão construindo um prédio da Justiça Federal ali do lado, e muita gente já se incomodava com o "Prédio da Caixa" (...), e as pessoas queriam tirar aquele bando de pobre dali, já incomodavam. A meu ver é uma população desassistida, vulnerável, mas simplesmente queriam tirar da Amaral Peixoto, não deram nenhuma solução. Ficou tudo muito incerto, a população do "Prédio da Caixa" é uma população esquecida, que não foi ouvida, e que não foi dada nenhuma outra opção de moradia.

Lorena é um desses sujeitos que seguram a barra, não só dela e de sua mãe, mas de muitos. Na correria dos dias pós-remoção, se colocou como mulher forte, geógrafa, que corre atrás da garantia do direito à cidade aos que co-habitavam o seu prédio-vivo. Foram noites dormindo e pulando entre quadras, sede de partido. Muitos hoje vivem em um casarão ocupado, em condições insalubres. O casarão não tem água corrente, luz elétrica e há ratos que passam entre aqueles que o habitam. Imaginem crianças, idosos, recém-nascido nessa situação. Não é uma casa muito engraçada, mas um não-lugar, com as feridas de quem o ocupou. E isto é uma parte, visto que a outra ainda se encontra na rua.

Atualmente o prédio continua lacrado, sem perspectiva de reabertura, porque com a pandemia tudo ficou atravancado. Os moradores, hoje, estão esperando a pandemia terminar para conseguirem o acesso ao prédio. E essa é uma das histórias de como uma cidade-máquina, com projetos-monstro, desapropriam, removem, deformam. A história do "Prédio da Caixa", que removeu seus moradores por uma suposta insalubridade e necessidade de obras que, comprovadamente, poderiam ter sido realizadas com seus moradores dentro. A comunidade do prédio-vivo, com força, cooperação e determinação grita: Prédio da Caixa Vive! Sueli Vive!

Relatos e fotos: Lorena Gaia (@lorena_borges_gaia)
Texto: Victoria Oliva (@vicfoliva), Manuela Phebo (@manuebos2) e Luiza Portella(@luizaport)

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